Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o preto no branco
e os pingos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.
Morre lentamente,
quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.
Pablo Neruda
António Nobre referindo-se ao seu único livro publicado em vida, Só (1892), declara que é o livro mais triste que há em Portugal
António Nobre
O João dorme... (Ó Maria,
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...)
Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!
O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos águas do moinho!
Ó mar! fala mais baixinho...
E tu mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...
O João dorme, o inocente!
Dorme, dorme, eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...
Ó mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
« Na vida que a dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir.»
Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!
E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!
Mas para isso, ó Maria!
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...
E os anos irão passando.
Depois, já velhinho, quando
(serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir:
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...
Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...
.
António Nobre
Paris, 1891.
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